5.12.2012

O idiota na literatura

O idiota na literatura: impossível, a não ser que entre nos entrelinhamentos brancos da página. O idiota deve manter-se puro (calado), e não escrever nem ler livros nem introduzir-se neles como personagem palradora.
Por mais que me desunhe a falar, a escrever, a explicar sempre pensei no meu íntimo, e no meu antiquíssimo diário íntimo que mantive como donzela sonhadora e idiota que era e sou, porque mudar não mudamos, sempre pensei portanto que o calado é o melhor. Tenho provas. Já enfrentei discursos muito agressivos calando-me e baixando os olhos, e ganhei. Reparei que, quando nos atacam com discursos na presença de terceiros (normalmente é isso que acontece), a pessoa que os faz não fala para nós mas para o terceiro que quer convencer, sossegar, converter, arregimentar para o seu lado. Aqui, mais do que em qualquer outra situação, o calado é o melhor, uma vez que o discurso de quem me ataca se molda àquilo que o terceiro quer ouvir, não passa de uma confirmação que não tem nada a ver connosco, mas com o outro, nós somos apenas o objecto inerte da disputa, sem importância, que deve ser humilhado. Mas uma disputa destas é tão filha da puta que nos apetece ripostar. Erro nosso. Por outro lado, como mostram as raras passagens do meu diário íntimo que agora encontrei num caixote de cartão grosso esquecido de papel de fotocópias Xerox, se nos calamos as pessoas continuam a pensar de nós, mesmo depois de 30 anos de argumentação brilhante e inteligente da nossa parte, que somos fundamentalmente idiotas porque nos calamos, porque não conseguimos argumentar numa dada situação (vejam, vejam a etimologia da palavrinha “idiota”). E agora digam-me lá se toda a literatura, incluindo este desabafo, não passa de uma disputa filha da puta posta em palavras para convencer, sossegar, converter, arregimentar alguém (o leitor, a mulher do leitor, o patrão do leitor, a igreja do leitor, o ideólogo do leitor e do autor), servindo-se de alguém que é apenas uma personagem, muitíssimas vezes colectiva, inerte, humilhada, secundária e idiota, sobretudo se não fala. Elevar o idiota a herói, só Dostoiévski, mas não pensem que tenho o russo em mente ao escrever isto.
Exemplo: uma entrada muito antiga do meu diário íntimo (das brumas da adolescência para esquecer) é apenas uma página cheia disto: AMO-TEAMO-TEAMO-TE AMO-TEAMO-TEAMO-TE AMO-TEAMO-TEAMO-TE… Se disser que já não me lembro quem amava, e que certamente era um amor tão utópico e vazio como o socialismo do mesmo nome, digam lá se não valia mais estar calado, mesmo no íntimo.

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