O idiota na literatura: impossível, a não ser que
entre nos entrelinhamentos brancos da página. O idiota deve manter-se puro
(calado), e não escrever nem ler livros nem introduzir-se neles como personagem
palradora.
Por mais que me desunhe a falar, a escrever, a
explicar sempre pensei no meu íntimo, e no meu antiquíssimo diário íntimo que
mantive como donzela sonhadora e idiota que era e sou, porque mudar não
mudamos, sempre pensei portanto que o calado é o melhor. Tenho provas. Já
enfrentei discursos muito agressivos calando-me e baixando os olhos, e ganhei.
Reparei que, quando nos atacam com discursos na presença de terceiros
(normalmente é isso que acontece), a pessoa que os faz não fala para nós mas
para o terceiro que quer convencer, sossegar, converter, arregimentar para o
seu lado. Aqui, mais do que em qualquer outra situação, o calado é o melhor,
uma vez que o discurso de quem me ataca se molda àquilo que o terceiro quer
ouvir, não passa de uma confirmação que não tem nada a ver connosco, mas com o
outro, nós somos apenas o objecto inerte da disputa, sem importância, que deve
ser humilhado. Mas uma disputa destas é tão filha da puta que nos apetece
ripostar. Erro nosso. Por outro lado, como mostram as raras passagens do meu
diário íntimo que agora encontrei num caixote de cartão grosso esquecido de
papel de fotocópias Xerox, se nos calamos as pessoas continuam a pensar de nós,
mesmo depois de 30 anos de argumentação brilhante e inteligente da nossa parte,
que somos fundamentalmente idiotas porque nos calamos, porque não conseguimos
argumentar numa dada situação (vejam, vejam a etimologia da palavrinha
“idiota”). E agora digam-me lá se toda a literatura, incluindo este desabafo,
não passa de uma disputa filha da puta posta em palavras para convencer, sossegar,
converter, arregimentar alguém (o leitor, a mulher do leitor, o patrão do
leitor, a igreja do leitor, o ideólogo do leitor e do autor), servindo-se de
alguém que é apenas uma personagem, muitíssimas vezes colectiva, inerte,
humilhada, secundária e idiota, sobretudo se não fala. Elevar o idiota a herói,
só Dostoiévski, mas não pensem que tenho o russo em mente ao escrever isto.
Exemplo: uma entrada muito antiga do meu diário
íntimo (das brumas da adolescência para esquecer) é apenas uma página cheia disto:
AMO-TEAMO-TEAMO-TE AMO-TEAMO-TEAMO-TE AMO-TEAMO-TEAMO-TE… Se disser que já não
me lembro quem amava, e que certamente era um amor tão utópico e vazio como o
socialismo do mesmo nome, digam lá se não valia mais estar calado, mesmo no
íntimo.
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