7.09.2012

Duas ou três coisas...


Nos tempos carnívoros da Rússia, em que haviam casado à força a menina Verdade com o bolchevismo degenerado, Issaac Bábel exaltava a escrita de Tolstói, «verdadeira» como emanação de nascente, um Tolstói amante querido e correspondido dessa tal fulana Verdade. Na entrevista que deu em 1937 (o ano das grandes repressões stalinistas e em que decorria a colectivização forçada das terras que provocou a fome gigantesca que matou milhões de pessoas), no ambiente oficial e feutré da União dos Escritores Soviéticos à revista oficial e feutré Estudos Literários, I. B. tentava claramente sobreviver. Nada que não se tenha visto e veja por cá numa escala mais vegetariana. Dos seus autores preferidos, clássicos e modernos, daqueles com quem mais aprendeu, mencionou apenas Tolstói, misturado com o oficial Cholokhov (o do Don Tranquilo), passeando-se em abstracções peripatéticas tais como: «Só que a matéria, o fundo das obras dele [Cholokhov], tendo uma roupagem sólida e ardor, não são tão importantes como em Tolstói, porque quando, em Tolstói, um senhor da boa sociedade sai de casa e diz: “Cocheiro, vinte e cinco copeques, para a Tverskaia”, tudo isso reveste o carácter de um acontecimento mundial, que se insere na harmonia do mundo.» É assim mais para o estranho que I. B. tenha deixado na manga o seu grande mestre Gógol e o profeta Dostoiévski, que via no escuro sem a tecnologia apropriada (mas só hoje começamos a dar-lhe razão, por favor leiam Demónios, sobre o terrorismo, leiam Os Irmãos Karamázov mas não se deixem influenciar pelo vigarista Freud). Sabiam que Dostoiévski, ainda nos anos 70 e 80 do século XX, era o clássico mais lido na União Soviética e não fazia parte do programa do ensino de língua e literatura russas nas escolas de ensino obrigatório? Dos seus contemporâneos, o judeu I. B. esquece estranhamente Bulgákov (porque era anti-semita ou porque era um escritor mal-visto?) e, na cautelosa entrevista, também esquece Tchékhov, substituindo-os por dois escritores menores da sua região odessita.
O que transparece do génio de I. B. na entrevista é a ironia, vertida no sotaque de Odessa, de quem está a ver nas caras opadas de vodca de qualidade dos funcionários entrevistadores os reflexos de sangue dos rapaces, como quem diz: meus senhores, emprestem-me alguma esperança, alguma compreensão e tolerância, mas, por favor, olhem que não me quero endividar muito.
Da leitura do livro de contos de I. B. que saiu recentemente na Relógio d’Água farei aqui, amanhã ou assim, uma referência encomiástica. 

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