Nos tempos carnívoros da
Rússia, em que haviam casado à força a menina Verdade com o bolchevismo
degenerado, Issaac Bábel exaltava a escrita de Tolstói, «verdadeira» como emanação de
nascente, um Tolstói amante querido e correspondido dessa tal fulana Verdade. Na
entrevista que deu em 1937 (o ano das grandes repressões stalinistas e em que
decorria a colectivização forçada das terras que provocou a fome gigantesca que
matou milhões de pessoas), no ambiente oficial e feutré da União dos Escritores
Soviéticos à revista oficial e feutré Estudos Literários, I. B. tentava
claramente sobreviver. Nada que não se tenha visto e veja por cá numa escala
mais vegetariana. Dos seus autores preferidos, clássicos e modernos, daqueles
com quem mais aprendeu, mencionou apenas Tolstói, misturado com o oficial
Cholokhov (o do Don Tranquilo), passeando-se em abstracções peripatéticas tais
como: «Só que a matéria, o fundo das obras dele [Cholokhov], tendo uma roupagem
sólida e ardor, não são tão importantes como em Tolstói, porque quando, em
Tolstói, um senhor da boa sociedade sai de casa e diz: “Cocheiro, vinte e cinco
copeques, para a Tverskaia”, tudo isso reveste o carácter de um acontecimento
mundial, que se insere na harmonia do mundo.» É assim mais para o estranho que
I. B. tenha deixado na manga o seu grande mestre Gógol e o profeta Dostoiévski,
que via no escuro sem a tecnologia apropriada (mas só hoje começamos a dar-lhe
razão, por favor leiam Demónios, sobre o terrorismo, leiam Os Irmãos Karamázov mas
não se deixem influenciar pelo vigarista Freud). Sabiam que Dostoiévski, ainda
nos anos 70 e 80 do século XX, era o clássico mais lido na União Soviética e
não fazia parte do programa do ensino de língua e literatura russas nas escolas
de ensino obrigatório? Dos seus contemporâneos, o judeu I. B. esquece
estranhamente Bulgákov (porque era anti-semita ou porque era um escritor
mal-visto?) e, na cautelosa entrevista, também esquece Tchékhov,
substituindo-os por dois escritores menores da sua região odessita.
O que transparece do génio
de I. B. na entrevista é a ironia, vertida no sotaque de Odessa, de quem está a
ver nas caras opadas de vodca de qualidade dos funcionários entrevistadores os reflexos de
sangue dos rapaces, como quem diz: meus senhores, emprestem-me alguma esperança,
alguma compreensão e tolerância, mas, por favor, olhem que não me quero
endividar muito.
Da leitura do livro de
contos de I. B. que saiu recentemente na Relógio d’Água farei aqui, amanhã ou
assim, uma referência encomiástica.
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